quarta-feira, 17 de março de 2010

A CARTA

A CARTA

A CARTA

“Querido Benjamim, FILHO DA FELICIDADE!

.Não será mais novidade se insistirmos em dizer-lhe o tamanho de nossa saudade. Três anos não são três dias. Sabemos o motivo de sua fuga, sim, isso que nos aconteceu, tantas coisas já se passaram e ainda insiste em estar longe de todos nós. Sofremos muito com tudo que passou, com tudo que poderíamos ter vivido esses anos se estivéssemos juntos. Ontem mesmo estive na casa de sua mãe, ela estava preocupada, não recebia notícias suas já há algum tempo. A não ser aquela carta que enviaste a um ou dois meses, por ela consegui o endereço do hotel e preferi te mandar essa carta, já que a maioria dos serviços inclusive correios não estão funcionando nessa região, pelo menos, é essa a idéia que temos pelos noticiários. Aqui no Brasil tanta coisa já está mudando, tanta coisa ainda está acontecendo. Sabia que mudamos de Presidente? Acho que deve saber! Sabia que fala-se em uma nova moeda? São tantas as coisas para te contar... Hoje não estou mais sozinha, tem alguém comigo que você ainda não conhece. Sophia é uma menina linda de olhos verdes, pele branca e cabelos encaracolados bem escuros, uma princesinha. Eu e o Paco estamos felizes. Nos casamos e hoje formamos uma família. Gostariamos de ter tido sua presença em nosso casamento, mas... Desistimos de te procurar. Mas hoje não quero mais desistir de você.

Ben, já faz tanto tempo. Durante esses anos, eu mesmo sofri muito, perdi pessoas importantes na minha vida, ganhei outras... mas entre os ganhos e perdas acabei amadurecendo como pessoa e principalmente o crescimento espiritual que tenho hoje, devo e muito, a todas aquelas noites em que ficávamos à frente de uma fogueira sentados contando as experiências da vida e trocando nossas “figurinhas”. Lembra daquela carta em inglês que você me escreveu “the journey”, era o título dela, ainda a tenho aqui guardada, tenho ela e todos aqueles chaveiros.

Espero que nossas mágoas já tenham ficado para traz. Tudo o que queremos, Paco, sua família e Eu, é termos você de volta. Não quero que desista de sua missão, mas queremos que venha terminar de fazer coisas que antes não podia aqui mesmo no Brasil. Hoje várias ONGs internacionais já se instalaram aqui e você tem a experiência que eles querem. Seria feliz aqui ao lado de seus amigos e de sua família. Não quero mais estender essa carta, quero só que saiba... Escrevi umas mil cartas destas para criar coragem de te enviar ao menos uma. Saudade. Traga-nos a felicidade de volta! ” Sarah.

- Não queria mais voltar – Disse Benjamim, pegou uma xícara de Chaí, deu dois goles e a pôs novamente na mesa – Tenho medo de retornar para o Brasil, sinto que aqui sou mais útil, posso trabalhar... Posso continuar viajando, tenho ainda algumas reservas de dinheiro, dá ainda para mais três ou quatro anos de viagem.

Sharadesh levantou um pouco a cabeça, e pediu que o seu amigo sentasse a sua frente, naquele momento a sua felicidade dependia daquele jovem rapaz. Benjamim tinha 25 anos de idade, tinha olhos grandes e castanhos, sua pele morena estava queimada das longas caminhadas no campo de concentração durante aquelas semanas no Paquistão, era alto, cabelos curtos e bagunçados, um sorriso largo com dentes bem cerrados, sincronizavam com o forte traçado de seu rosto. Havia deixado o Brasil em 1990, primeiro era somente um curso de inglês que faria em Londres, lá arranjou emprego de garçom e logo depois mudou-se para França, lá completou 23 anos e ainda trabalhava como garçom, acumulava esse serviço com o trabalho em uma ONG ligada a ONU, de jovens entre 20 e 27 anos, ele havia encontrado nãos “médicos sem fronteiras” não só um trabalho voluntário, mas a oportunidade de continuar viajando por lugares que ainda não conhecia. Era um jovem destemido, precoce. Sempre soube administrar sua vida. Mas tinha medos e angustias que somente ele conhecia. Quando deixou o seu país, deixava para traz sonhos antigos mas buscava novos rumos para sua vida.

Naquela semana, tinha tido um sério mal estar. Estava febril, devia ser do sol que havia pegado durante todo dia enquanto ajudava a armar as barracas de algumas pessoas que haviam chegado ao campo. Naquele dia ele conheceu Sharadesh e sua família. Eram sete pessoas, três filhos, uma menina e dois meninos e mais quatro esposas Nilush, Rallen e Latiffa. Todas eram mulheres aparentemente acima dos trinta anos de idade, mas havia uma entre elas que aparentava ainda ser mais nova do que as outras. Sharadesh era um comerciante afegão, havia deixado Cabul, a cidade estava praticamente destruída pelos bombardeios diários, poucas famílias inteiras ainda continuavam na cidade. O comércio já não lhe rendia mais o esperado. Toda sua riqueza e propriedades haviam sido tomadas pelo novo governo afegão, acusavam-no de ser um “traidor da pátria” pois havia aderido a oposição daquele Estado. Então com medo e já quase sem esperanças fugiu. O Afeganistão foi uma monarquia até 1973, quando foi proclamada a república. A Constituição de 1977 declarava um Estado unipartidário e o Islã como a religião oficial. Depois da queda do regime comunista, em 1992, tomou o poder um conselho provisório.

Já contavam mais de seis semanas desde que havia ajudado aquela família a se alojar naquele pequeno espaço que lhes foram dado. Faltava alimento, água potável, cobertores e remédios os dias eram quentes e as noites frias. Mutilados, doentes, mulheres grávidas, mulheres parindo em meio a lugares sujos e crianças correndo em meio a corpos ou pedaços de amputações, descalças em meio a detritos humanos e lixo. Nas primeiras semanas Benjamim se deparou com a fome que aquelas pessoas estavam passando, depois, as várias doenças que as atingiam como diarréia e cólera. Mas para Benjamim, a pior cólera que ele conhecia era a do ser humano.

Com o trabalho que havia conseguido na ONG conseguia ajudar da forma que podia, trabalhavam de forma itinerante na região do oriente médio. Já haviam estado no Afeganistão, Iran e agora estavam ali diante daquele mar de refugiados. Dirigia para os médicos, às vezes fazia um trabalho de técnico em enfermagem, cozinhava, cuidava dos ferimentos, limpava e fazia curativos, à noite quando sentavam-se em volta de uma fogueira para espantar o frio pegava o seu maior tesouro e cantava para os companheiros de trabalho, seu violão ainda ecoava naquele deserto, quando notava ao seu redor já havia uma multidão de pessoas, aplaudindo e tentando acompanhar com as mãos as letras de músicas brasileiras que ele entoava. Sua voz era rouca e de tons graves, diferente da dos cantores paquistaneses que estavam no acampamento.

No Brasil havia deixado para traz uma mulher forte, serena já com cinqüenta anos de idade. Médica. Sua mãe. Seu pai havia falecido sete anos antes de sair do Brasil. Era um garoto ainda, mas as lembranças sempre vinham à noite em sonhos como o que teve na noite em que esteve com febre. Sentia saudades de todos, mas nenhuma saudade era maior do que a que sentia por Sarah.

- Não quero abandonar o trabalho na ONG.

Bem, abaixou a cabeça.

- Não precisa você abandonar sua vida novamente. Precisa adiar um pouco os seus planos. Assim como fiz com os meus quando deixei Cabul. Ou acha que queria ter perdido tudo? Acha que fico feliz ao ver minhas esposas e filhos aqui?

- Não é a mesma coisa Sharadesh – o fitou nos olhos mais uma vez, mas aquele olhar entregava tudo o que ele realmente queria e lutava para não desejar - Preciso me conhecer melhor, não quero ...

- Você um jovem com um sexto da minha idade, me dizer que precisa se conhecer melhor? Não acredito que você esteja me dizendo isso Ben jo.

- O senhor que tanto sabe da vida, não imagina o que quero pelo mundo não é?

- Imagino sim meu filho. – Os olhos de Sharadesh não desviavam dos daquele jovem que ele tanto admirava. Era como se houvesse ganhado mais um filho quando aquele brasileiro atravessou a sua vida.

- Um dia agente pensa que tem tudo o que sempre sonhou. Amigos, bebidas, família, dinheiro, mulheres bonitas, carros... Nada disso me preenchia mais depois que conheci todas essas pessoas. São tantas pessoas... São três anos... como ela disse aqui na carta, não são três dias. E agora o que me faria voltar? Ela já está casada e tem uma filha. Não quero atrapalhar a felicidade deles.

Benjamim não conseguia disfarçar a decepção que sentia naquelas palavras. Levantou-se. Já estava escurecendo. De longe podia enxergar as luzes das torres de segurança erguidas ao redor daquele deserto cheio de barracas. Com um braço segurava a lona que servia de porta para a tenda de Sharadesh, olhou para traz, viu aquele velho homem deitado em cima de um velho tapete, sua cabeça estava apoiada em um saco com algodões, lá fora mulheres faziam orações, nas mãos seguravam o antigo Corão, entoavam cantos e mais orações, ajoelhavam-se virados para o Oeste, abaixavam a cabeça, sopravam as mãos entrelaçadas em frente a boca e sopravam, logo após levavam as mãos a testa. Sharadesh sofria muito com a pneumonia que havia adquirido naquelas semanas. Conseguia ainda falar mas com certa dificuldade. Era um homem sábio que estava ali deitado, impotente, perante tudo que a vida havia lhe tirado, mas principalmente, impotente em não poder mais usufruir daquilo que ela o havia ensinado. Sharadesh, o fitou nos olhos, com pouca força, só conseguiu dizer que estava na hora de ele, Benjamin jo, voltar para casa.

Benjamim saiu naquela noite, dormiu. Na manhã quando voltou ao acampamento. Sharadesh já estava morto.



continua...

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

PASSOS LENTOS - A JORNADA

Benjamim caminhou até um campo de concentração dos refugiados. A guerra havia sido impiedosa com aquele povo. Já se passaram três anos que havia saido do Brasil. Havia estado na África, Europa... Aquela carta que havia recebido de seus amigos, ainda fechada era a maior fonte de lembranças. Sentia-se sozinho, inseguro, tinha medo de voltar para casa. As barracas e aquele amontoado de pessoas, era verão e o calor chegada aos 39º graus, o Paquistão contava com mais de sete milhões de refugiados afegãos. Era verão de 1993. Com uma mochila nas costas e pouco dinheiro, chegou em uma das tentas, olhou para aquele velho homem de setenta anos, olhos miudos, boca pequena, cabelos grisalhos e pele castigada pelo sol. Sentou-se. Estendeu a mão e mostrou a carta para que o velho pudesse ver. Sharadesh, o fitou nos olhos, com pouca força, só conseguiu dizer que estava na hora de ele, Benjamin jo, voltar para casa.



Passos Lentos.
Dois anos depois de "Dias Nublados", escrevo esta nova história.
Sejam Bem Vindos.

José A. Monteiro Neto